terça-feira, 1 de maio de 2007

Heróis deficientes? Deficientes heróis?


Numa lista de discussão sobre acessibilidade e pessoas com deficiência de que participo, enviaram um artigo sobre o cientista Stephen Hawkings, retratado como um herói. Leia: http://g1.globo.com/Noticias/Colunas/0,,7414,00.html

E eu inclusive aproveitei para responder automaticamente, falando das "heroínas bailarinas" cegas, a cujo show assisti neste sábado (descrito no meu post anterior, neste blog-> http://mauricio-kanno.blogspot.com/2007/04/bal-de-cegos.html).

Mas aconteceu o seguinte: houve uma reação negativa ao artigo, em relação ao termo "herói". Disse Marta Gil:

"(...) quanto ao termo "herói"/"heroína" há que ficar alerta.

Tomo a liberdade de reproduzir o comentário de Paulo Romeu a esse feito do Stephen Hawkings. Outros se manifestaram na mesma direção.

A cada dia, vamos aprendendo com as vivências e reflexões do grupo.

Abraços,
Marta Gil"

"Realmente, a notícia é muito legal, exceto pelo fato de o terem chamado de
herói.

Não queremos que nos vejam nem como heróis nem como coitadinhos. Queremos
ser vistos com todas as nossas virtudes e com todas as nossas fraquezas como
qualquer pessoa."

Abraço: Paulo Romeu"
(imagino que Paulo seja cego)
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Bem, vejam só o que escrevi como resposta:

ahá!

"herói" está em discussão? é minha especialidade...

o fato é que eu nem tinha dado muita importância para o termo "herói" referido a Hawkings... Só fiz um paralelismo automático com as bailarinas.

Bem, mas vamos investigar então o termo a fundo. Vou reproduzir alguns trechos de meu TCC - Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo: Jornalismo nas Histórias de Super-Heróis: Os quadrinhos de Clark Kent e Peter Parker.

Na Justificativa:

"Mas que conceito de herói – dos muitos existentes – estamos utilizando nessa correlação? No ensaio "Heróis e Super-Heróis", Jeph Loeb e Tom Morris (2005: 25) ressaltam um dos conceitos-chave para um verdadeiro herói: "homem [considerado como ser humano em geral] admirável por feitos e qualidades nobres", estando esta nobreza inclusa até em pessoas comuns sem super-poderes, como "bombeiros, policiais, médicos, enfermeiros e professores".

Os autores afirmam ainda que "as pessoas nesses empregos geralmente transcendem o interesse próprio normal, colocando os interesses dos outros em primeiro lugar na lista de prioridades". E mais: "Eles são os guerreiros da vida diária cujos sacrifícios e atos nobres beneficiam a todos nós." Claro, bela visão, mas limitada, como os próprios autores a seguir reparam: "Qualquer pessoa que defende o bem e o certo, contra todas as forças contrárias que tentam minar seus esforços, pode ser vista como heróica." (LOEB; MORRIS, 2005: 26)
(...)

No capítulo 4.3.3:

Jeph Loeb e Tom Morris, no artigo Heróis e Super-Heróis (2005: 24), nos dão conceitos interessantes: um herói é um "homem extraordinário por seus feitos guerreiros" e "um super-herói é um indivíduo de força extraordinária". Tais idéias nos remetem a praticamente todos os poderosos aventureiros comuns das histórias em quadrinhos, sendo assim certeiras no que se refere à imaginação coletiva.

Outro entendimento é pensar no "super-herói como uma pessoa que arrisca a vida pelos outros e leva o prefixo 'super' para designar a posse de super-poderes", o que faz algumas pessoas acreditarem que o conceito de um super-herói é problemático, e até uma contradição, segundo os autores. Pois "o que há de tão heróico em impedir um assalto à mão armada, se a sua pele é à prova de balas e sua força é irresistível em comparação com qualquer malfeitor de rua, comum ou fora do comum?"

Assim, quanto mais super um indivíduo é, menos heróico ele pode ser, pela contradição do fator de risco de vida com o de super-poderes. Idéia que Dias-Pino (1972: 56) reforça: "Coragem é a do bandido que, em condição subinferior, enfrenta os super-heróis." O próprio personagem super-herói Capitão Marvel admite: "Esses bombeiros... são os verdadeiros heróis! Eu... sou só um sortudo com superpoderes!" (Shazam! 0: 54)

Porém, Loeb e Morris advertem que essa é uma confusão do conceito original de herói. Esclarecem-nos que "herói" é um termo derivado do grego antigo, significando "homem com qualidades magnânimas [grande de alma, conforme o dicionário Aurélio (2000)]; semideus". Desta maneira, o conceito de "super-herói" não é um paradoxo, porque ele deve juntar as duas características. "Nenhum nível de realizações e feitos é suficiente para fazer de alguém um herói [...] tal pessoa deve personificar qualidades nobres, também", seu "nobre caráter o leva a fazer atos dignos."

Para Martin Cezar Feijó (1987: 12), o nascimento do herói se deu com o mito. Pois "todos os povos chamados de primitivos têm em seus mitos e em seus ritos e cultos a presença de vários indivíduos destacados, superdotados, valentes, diferentes da média dos homens, que nós chamamos de heróis", sendo que os gregos que deram a eles o nome de heróis, assim como foram os mitos gregos que mais sobreviveram hoje e que não se transformaram em religião.

Bastaria então a palavra "herói", ao invés da "super-herói", já que a definição grega original de herói também envolvia "qualidades sobre-humanas"? Os autores explicam que o conceito crucial de um herói se metamorfoseou com o tempo, passando por uma idéia que nem envolvia super-poderes até a noção mais moderna que enfoca os grandes feitos e a nobreza moral", e por isso "é necessário um termo que traga o componente de poder superior de volta ao equilíbrio".

Charles Tagliaferro e Craig Lindahl-Urben (2005: 79) explicam-nos eticamente: o herói é aquele que, no dilema típico entre salvar um indivíduo ou um grupo de pessoas, é incapaz de fazer a escolha. E o passo seguinte o eleva ao status de super-herói: ele, de fato, salva tanto o indivíduo inocente quanto o grupo. Para eles, essa é aplicação máxima da "ética personalista", uma filosofia que "atribui a todos os indivíduos um valor fundamental e irredutível".

Ariel Dorfman (1978: 27) chama a todos os heróis de ficção da cultura de massas de "super-heróis", sem se importar com super-poderes; o que importa para ele é a ocorrência constante de "um homem superdotado que consegue superar qualquer obstáculo que lhe aparece no caminho", por meio da "força física, perícia e habilidade, capacidade de persuasão pela palavra, e sua moral irrepreensível". Em relação ao personagem específico que analisou, o Llanero Solitário (traduzido como Zorro no Brasil e marcado pela sua despedida "Aiou, Silver!"), por exemplo, ele diz que "é dotado física e intelectuamente, mesmo que não apresente características sobrenaturais como as do Super-Homem". (p. 54-55)"
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Ok. Dados esses conceitos, o que pensar do caso do cientista e do caso das bailarinas?

1 - O fator moral está em jogo? Ou seja, são admiráveis por feitos e qualidades nobres? Apresentam qualidades magnânimas? São grandes de alma? Arriscam a vida pelos outros? Transcendem o interesse próprio normal, colocando os interesses dos outros em primeiro lugar na lista de prioridades? Seus sacrifícios e atos nobres beneficiam a todos nós? Defendem o bem e o certo, contra todas as forças contrárias que tentam minar seus esforços?

Bem, a princípio, não me parece que nem Stephen Hawkings, nem as bailarinas cegas, estejam desempenhando ações típicas de Jesus Cristo ou Madre Teresa de Calcutá, ou quem sabe Super-Homem... Não estão sendo "bonzinhos", "bondosos" com as outras pessoas. Sequer estão sendo voluntários em algum trabalho beneficente, não estão colaborando em nenhuma atividade pelos mais necessitados que eles. Estão simplesmente fazendo seu trabalho, desenvolvendo seus potenciais, fazendo o que gostam. Desta forma, o termo "herói" não caberia. Será isso mesmo?

Vejamos: "Ele mesmo [Stephen] admite que boa parte da motivação para tomar parte na aventura veio da idéia de encorajar a humanidade a acreditar na ocupação do espaço. Para ele, não há outra saída para a continuada existência humana, senão a exploração de outros mundos além da Terra."

Ou seja, aparentemente, há um sentido humanitário assumido em suas ações. Então, tudo o que ele faz, sim, se converte em algo moralmente positivo, nobre, ao menos pelo que dá a entender a reportagem. Eu já discordo dessa maneira de ajudar a Humanidade, mas enfim, falarei disso depois. Ver aqui, em meu post seguinte: http://mauricio-kanno.blogspot.com/2007/05/humanos-vrus.html

E as bailarinas? Entre as suas apresentações, elas dão depoimentos, mostrando como têm sido bom para elas trabalhar com a dança. "Senti meu sonho se realizando", conta Geyza Pereira. "Conhecer a dança era o que eu mais queria, pois através dela posso entrar num mundo mais bonito e esquecer os problemas que nos circulam...". "Marina Alonso aprendeu a confiar em si mesma e, hoje, ela pode dizer que tem uma historia, mas ainda tem muitos sonhos para serem realizados, como dançar em palcos europeus e principalmente o sonho de conseguir um patrocínio e, assim, poder viver da dança."

Não encontrei nada no site delas falando que há uma intenção nobre, em ajudar as outras pessoas, e assim por diante. Talvez tenham dito algo nos depoimentos ao vivo sobre isso, mas não me lembro exatamente do que disseram.

2- O fator de poder está em jogo? Ou seja, têm força extraordinária? São extraordinários por seus feitos guerreiros? Têm super-poderes? Qualidades sobre-humanas? São indivíduos destacados, superdotados, valentes? Realizam grandes façanhas?

Com certeza o cientista e as bailarinas não fazem feitos "guerreiros", nem são superdotados. Nem têm força física extraordinária, mas com certeza força de vontade extraordinária. E com certeza são também muito valentes. Além de realizarem com certeza grandes façanhas. Agora, super-poderes? Qualidades sobre-humanas? Como saber?

O fato é que todas as pessoas possuem defeitos e poderes, alguns super-defeitos e super-poderes. Não dá pra generalizar e falar de maneira absoluta. Claro, o Super-Homem aparentemente só tem super-poderes; mas acontece que ele também tem super-defeitos: por acaso ele é um bom namorado, um bom marido para sua namorada ou esposa Lois Lane? Ele sempre a deixa largada para combater seus vilões. O líder dos super-heróis X-Men, Charles Xavier, anda em cadeira de rodas, mas consegue ler a mente dos outros, tem grandes poderes mentais.

Com certeza, se falarmos de pessoas cegas, já falamos de pessoas que têm um super-poder ao contrário; mas, assim como Xavier, elas podem ter "super-poderes" em outras áreas. Assim, poderíamos falar em poder, se considerarmos a super-força de vontade das pessoas em vencer seus desafios. O talento científico; o talento artístico. É preciso verificar que poder é importante para a vida da pessoa e se destacar.

3- O fator de pouco poder com grandes desafios está em jogo? Ou seja, deveríamos ir pelo caminho dos que criticam o conceito comum de super-herói, inclusive apontado pelo personagem Shazam: "Esses bombeiros... são os verdadeiros heróis! Eu... sou só um sortudo com superpoderes!" Pois "o que há de tão heróico em impedir um assalto à mão armada, se a sua pele é à prova de balas e sua força é irresistível em comparação com qualquer malfeitor de rua, comum ou fora do comum?"

Parece que é este o conceito que o repórter Salvador Nogueira adota. Vejamos:

"Mas hoje eu vou falar de um herói que não tem nenhuma dessas características, e talvez por isso valha mais do que todos os outros."

"Heróis da vida real, diferentemente daqueles que usam capa vermelha nas histórias em quadrinhos, têm mesmo seus defeitos e falhas. Se isso faz algo por Hawking, é aproximá-lo ainda mais de nós, como um homem, não como uma criatura mítica. E tê-lo por perto ao longo das últimas décadas foi uma ótima coisa para o mundo."

"Mesmo que ele não chegue lá, Steve já fez o mais importante. Depois dele, não há mais dúvida de que, se alguém realmente se determina a fazer algo, não há nada no mundo que possa impedi-lo. Se isso não é ser um herói, então não sei o que pode ser."

"Sua viagem foi muito mais do que meramente um entretenimento caro para um corpo quase totalmente desfalecido -- como cabe bem aos heróis, a ação do famoso cientista tem uma "moral da história". Ela diz: se até alguém como Steve pode ir ao espaço, qualquer um pode.

(...)

Entretanto, o que mais impressiona não é a mensagem que Hawking envia ao flutuar no ar, mas a que ele enviou durante muitos anos ao perambular pelo mundo em sua cadeira de rodas. Ele é a personificação do que o espírito humano é capaz quando há determinação e alegria de viver, a despeito de quaisquer impedimentos."

Bem, considerações semelhantes podem ser aplicadas às bailarinas: fazem um trabalho magnífico, belíssimo, mesmo com suas dificuldades inerentes à falta da visão. E, claro, isso é um exemplo para todos.

Lembrar que este terceiro conceito é criticado pelos autores Loeb e Morris, por ser, segundo eles, uma confusão em relação ao conceito grego original, que une os dois conceitos: a nobreza de caráter e a possibilidade de realizar grandes façanhas.

4- Então, façamos a pergunta mais importante: As bailarinas e o cientista conseguem unir realmente a nobreza de caráter com a possibilidade de realizar grandes façanhas?

Realmente, não sei sobre a nobreza de caráter deles, ao menos isso não transparece, não fica evidente, como dissemos. Grandes façanhas, com certeza eles fazem, são pessoas destacadas.

Então, podemos dizer que são parcialmente heróis, se pegarmos este conceito mais restrito. Se tomarmos outros conceitos, a resposta varia, conforme vimos no decorrer desta discussão.

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Comento agora o que disse Paulo Romeu: "Não queremos que nos vejam nem como heróis nem como coitadinhos. Queremos ser vistos com todas as nossas virtudes e com todas as nossas fraquezas como qualquer pessoa."

Ok. Reparar o seguinte, no entanto: não é simplesmente porque uma pessoa perde algum dos sentidos, por exemplo, que ela ganha essa categoria de herói ou coitadinho. Creio que, indepentemente disso, as pessoas podem se destacar de certas maneiras.

Bem, pensemos nos conceitos apresentados sobre o "herói". Talvez possamos começar a encontrar mais heróis... Ou não, se preferirem ignorar o termo, por considerarem que esses conceitos não valem.

2 comentários:

Thomaz Napoleão disse...

Salve, Xê! Apenas agora descobri que você tem um blog. Belissimo post.

Eu tendo a concordar com o Martin Cezar Feijó. Vejo a noção de heroismo muito proxima dos mitos fundadores de cada povo. O heroi é promovido como alguém exemplar mas principalmente excepcional, distante da realidade.

Acho isso meio perigoso: criar uma categoria de comportamento (bravura, coragem, sacrificio) ideal e perfeita é o primeiro passo para distancia-la do "homem comum". Sempre podemos dizer que não precisamos salvar ninguém, pois não somos herois.

Além disso, uma sociedade de herois pode facilmente se tornar eugênica ou fascista. Pense na Esparta mitica, como representada no filme "300".

Mas os valores transmitidos por esses mitos são, também, a base do convivio social. Não sei. Talvez a existência de herois seja um mal necessario das sociedades humanas.

Maurício Kanno disse...

Opa, Napoleão! Talvez seja difícil mesmo para a turma do Jornalismo, ou mesmo da Poli, me descobrir por aqui mesmo... O fato é que faz tempo que não me chamam mais de (de Xenônio, o elemento químico)! No trabalho, me chamam de Mao! Bem, acabo de acrescentar um XE54 ao título do Blog, por enquanto... Vamos ver como resolver isso.

Concordo contigo; é complicado esse excesso de heróis, ainda mais se isso significar "bravura, coragem, etc." ao extremo... Muitos, como na tal Esparta seriam sacrificados.

Bem, mas como viu, há diversas idéias de heróis... Se você fala no Martin Cezar Feijó, nos mitos fundadores de cada povo, no nosso caso, do Brasil, temos o nosso querido "herói de nossa gente", o Macunaíma. É claro, pensado às avessas, em retrospectiva...

Em parte, com certeza é em valores de Macunaíma que se inspiram os brasileiros mesmo: "Ai! Que preguiça..."

Mas não só brasileiros, não há porque se fazer um preconceito desses... E nem todos.

Só mencionei este exemplo para mostrar como este "herói" diferenciado é uma concepção que subverte completamente essas noções tradicionais de herói. Ou seja, é claro que herdamos concepções clássicas como as mencionadas no texto... Mas também as subvertemos, criando um Macunaíma, com valores altamente distintos!

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E quanto à questão de heroísmo que distancia da realidade e outro heroísmo que aproxima? De fato... Se for pensar que para ser herói total, pleno, precisa ser "tudo aquilo", com certeza não rola... Mas penso no herói como um que espelha um ideal. Inalcançável por inteiro, mas é como o conceito de Deus: apesar de nunca alcançar totalmente, o importante é nos refletirmos nele, nos inspirarmos nele.

Mas acho que muitos já se impacientaram com esses ideais tão distantes.. E por isso mesmo, os heróis foram ficando cada vez menos perfeitos e mais normais. Tal como o Homem-Aranha, protagonista do filme que estreou ontem, e também, quem sabe, os modelos trabalhados neste post: o cientista mudo, com várias paralisias físicas; e as bailarinas cegas.

Assim, considerando herói (que bom, você me lembrou de destacar esse conceito), um ser em quem nos inspiramos, simplesmente, acho que a coisa fica melhor. Tipo, é como dizer: "Eu sou seu fã!" = "Você é meu herói!"